Há quanto tempo você não tira uns minutos da sua rotina para desacelerar? Seja nas grandes cidades ou fora delas, a impressão é que o mundo gira depressa demais. O dia já não rende tanto quanto deveria, as tarefas se acumulam e, para moldar a vida a esse ritmo frenético, é preciso encolher até perceber que a essência ficou um pouquinho vazia.
É assim que Ailton Krenak, líder indígena convidado por Emicida no Chamaê, percebe a civilização. Mas afinal, por que correr tanto? Onde é o destino? E o que esse frenesi tem causado nas pessoas, coletivamente? Krenak e Emicida não têm as respostas exatas para todas as perguntas, mas o papo entre eles no podcast Chamaê dá algumas pistas.
O episódio do podcast vai na contramão da correria e convida a pensar sobre o mundo atual, o mundo que todos querem e o quão longe a sociedade está dele. Entre uma reflexão e outra, os dois trazem uma série de boas referências literárias para quem tem pensado sobre as mesmas questões.
E, antes das dicas, não esqueça que você pode conferir a conversa dos dois na íntegra em podcast. Ouça sem moderação.
Amkoullel, o Menino Fula, de Amadou Hampâté Bâ
Emicida cita o pensador e escritor malinês ao falar do poder da oralidade e de como ela molda saberes, sobretudo entre povos indígenas e quilombolas. É dele a frase que diz que "quando um ancião morre, é como se uma biblioteca fosse incendiada", já que o conhecimento dos líderes de aldeias é compartilhado através de palavras faladas, não escritas.
O próprio Krenak se identifica com isso e segue esse método. Ele acredita que foi abençoado com uma "antiga tradição de narradores" e ressalta a importância dos griots, os contadores de histórias africanos, para a formação e transmissão de conhecimento nos países da África Ocidental.
Voltando a Amadou Hampâté Bâ: ao longo de sua carreira, o escritor publicou mais de 10 livros, entre pesquisas e autobiografias, mas poucos deles foram traduzidos para o português. Amkoullel, o Menino Fula é um desses títulos escassos, mas que resume bem a trajetória do pensador, da infância à vida adulta, para leitores brasileiros.
Metafísicas Canibais, de Eduardo Viveiro de Castro
Pessoas indígenas têm quase três vezes mais chances de viver em situação de extrema pobreza do que pessoas não indígenas, segundo um estudo global de 2020 da Organização Internacional do Trabalho. Só esse dado já dá uma dimensão de como o acesso à renda entre indígenas é algo complexo.
Um pesquisador que sempre esteve atento a essa questão é Eduardo Viveiro de Castro, antropólogo e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na década de 1980, ele esteve próximo ao povo Araweté, na região do Médio Xingu, enquanto escrevia sua tese de doutorado.
Sobre Metafísicas Canibais, Krenak diz: "O Eduardo consegue sacar o seguinte: o Brasil se especializou na produção do pobre. Não é a pobreza, mas o pobre. Produzimos o pobre em série", explica Krenak.
A Ilha do Dr. Moreau, de H.G.Wells
Pode um livro de um escritor europeu, lançado em 1896, explicar algo sobre o Brasil de 2022? Talvez sim, segundo Emicida. Ele usa a obra de ficção científica para falar das mazelas deixadas pela colonização.
Isso porque o livro conta a história de um cientista obcecado, que deseja transformar animais em seres humanos através da dissecação e outras experiências dolorosas. Para realizar seu plano, o cientista se refugia em uma ilha deserta, dando origem a 120 criaturas diferentes.
Emicida explica: "Embora algumas pareçam e tenham características humanas às vezes, nenhuma delas é um ser humano de verdade: é a colonização."
A Trilogia do Cairo, de Naguib Mahfouz
A literatura é uma ferramenta mágica que permite conhecer lugares e pessoas sem precisar sair do lugar. Quem lê os romances Entre Dois Palácios, Palácio do Desejo e Jardim do Passado, que juntos compõem a trilogia do escritor egípicio Naguib Mahfouz, sente exatamente isso.
Naguib é reconhecido como um dos maiores escritores contemporâneos do Egito e recebeu um Nobel de Literatura em 1988. Ao citar a obra, Krenak pontua a genialidade do escritor em colocar o Rio Nilo como algo vivo e presente em toda a narrativa, que apresenta um retrato fiel das mudanças sociais que aconteceram no país de origem do escritor durante as décadas de 1950 e 1960.
"O Nilo é um protagonista ativo da história, um personagem. O livro é muito especial e consegue introduzir a gente em uma visão sobre aquela região fora de toda a caricatura produzida sobre o Oriente Médio", explica Krenak.
Bônus: Como um Rio, Como um Pássaro, de Ailton Krenak e Hiromi Nagakura
"Eu já sou meio japonês porque tenho um livro no Japão", brinca Krenak enquanto narra a história do material produzido em parceria com o fotógrafo Hiromi Nagakura.
O nome do livro nasceu visualmente, a partir da observação do filósofo sobre os ideogramas das palavras "rio" (川) e "ave" (鳥). "Se você olha, percebe que é mesmo um rio e um pássaro. É sugestivo pra carambra", explica. Essa também é uma das poucas vezes em que Krenak se dedicou a um material escrito logo de cara, já que sua obra é constituída majoritariamente por palestras e entrevistas transcritas.
A proximidade do filósofo com o fotógrafo é antiga: na década de 1990, Nagakura desembarcou no Brasil para documentar a rotina de pessoas indígenas na Amazônia. Krenak foi uma espécie de líder da expedição. "Ele queria fotografar as pessoas em seu cotidiano dentro das aldeias. Nessa época, eu estava fazendo uma atividade que já estava programada [com o povo Ashaninka, no estado do Acre]. Então ele me disse 'eu vou ser sua sombra, onde você for eu vou'."
Dessa história nasceu um texto chamado A Sombra e o Samurai, que está presente em um dos livros de Nagakura san. Para o próximo ano de 2023, finalmente todo o material que simboliza esse encontro de gigantes será publicado em português, por ocasião da exposição que vai homenagear o amigo japonês.
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