"Um ser humano fundamental, cujas ideias que pretendem adiar o fim do mundo interessam àqueles que sonham com um Brasil onde a população tenha a oportunidade de viver com dignidade". Essas são algumas das palavras que Emicida usa para descrever o convidado do quarto episódio do podcast Chamaê, Ailton Krenak.
Krenak é escritor, jornalista, líder indígena, ambientalista, filósofo e poeta, mas sua potência vai além de qualquer título – sábio talvez seja o que melhor chega perto. Atrai as pessoas de forma orgânica, chamando-as ao seu redor sem ter que pedir.
Com a fala mansa, divide um pedacinho desse saber acumulado em seus 69 anos de vida, somado ao aprendizado dos seus ancestrais, os Krenaks, povo indigena da região do Vale do Rio Doce - MG.
Com o saber milenar da oralidade – apesar de ser escritor, ele produz na forma oral e só começou a ler e escrever aos 20 anos –, Krenak e Emicida mergulharam em reflexões profundas para repensar a vida, o trabalho, a correria, a relação com a natureza e o valor das coisas – tangíveis e intangíveis.
O episódio completo pode ser ouvido dando o play logo abaixo. A seguir, veja os pontos altos dessa conversa.
O poder da oralidade
O conhecimento vai muito além daquilo que é escrito. Os primeiros registros de escrita datados pela história aconteceram na Mesopotâmia. Em 3500 a.C, os sumérios desenvolveram a escrita cuneiforme, a primeira sistematizada da história, um código que pouquíssimas pessoas dominavam.
A escrita alfabética, ou seja, que é expressa a partir de um alfabeto com um sistema de sinais que exprimem sons, só surgiu por volta de 2.000 a.C, segundo uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ou seja, a humanidade viveu mais de 200 mil anos sem escrever. Então, como os conhecimentos foram passados? Pela oralidade.
Ainda hoje existem povos e aldeias em que a oralidade é mais importante que a escrita. Este é o caso da maioria dos povos indígenas brasileiros, a exemplo dos Krenak. "Nós chamamos essa vasta experiência com a oralidade de Nhe moronguetá: o narrador, falador, quem tem a comunicação e essa fala me interessa muito mais do que a escrita".
Apesar de hoje ter seis livros publicados, Ailton Krenak só começou a ler e escrever aos 20 anos – e com desconfiança, porque não achava que as letras conferiam com o que ele desejava expressar.
A escrita falada, como ele diz, mostra a força da oralidade. "A oralidade sugere imagens e a escrita resume. Quando você faz um parágrafo, resume um mundo de imagens que uma fala proporciona. No papel, você dá uma enquadrada e talvez diferentes leitores possam ter diferentes imagens em uma mesma frase ou parágrafo", complementa.
Como ele resolve essa questão no dia a dia digital? Lotando suas mensagens de emojis, para a reflexão de Emicida: " O alfabeto tem as suas limitações, e quando você lança mão desses emojis fico pensando no poder de comunicação de uma imagem".
Krenak, o anti materialista
Acordar antes do sol da manhã, chamar a lua e contemplar uma montanha. Se isso parece distante de uma típica rotina corrida, para Ailton Krenak são momentos fundamentais para todos.
"Um menino do Rio de Janeiro me falou que eu fiz ele olhar as montanhas na cidade dele. Ele mora na Gávea e disse: 'você me devolveu a montanha.'"
Ailton Krenak
Ele contextualiza o seu modo de existir ao dizer que a vida é fruição: "Não tem jeito de você enquadrar a vida. Senão perde o sentido, necrosa. Não vai mais escutar o sabiá, ver o sol ou nem a lua porque vai ficar nesse turbo."
Krenak acredita que a a existência humana não pode ser trocada por mercadoria, que não pode ser reduzida a um modus operandi em que ou você se enquadra, ou não serve para aquele lugar.
Em um dos seus livros, "A vida não é útil", Ailton Krenak fala sobre como a civilização e o consumismo desenfreado produziram uma visão estreita e excludente do que é a humanidade.
"Não tenho processo, eu sou possesso"
Curioso sobre o processo criativo de Krenak para a produção dos seus livros, Emicida questiona: "Me parece que o que te leva a escrever são duas coisas: urgência e esperança."
"Em cada um dos seus livros vejo dureza, mas vejo essa fresta de esperança, porque é importante que a gente acredite em algo."
Emicida
Ao questionamento sobre o processo da ideia até a materialização em texto, Krenak responde: "Eu sou anti processo. Sou desorganizado, não tenho processo, eu sou possesso. Eu acordo alguma hora do dia ou noite com uma ideia me tomando, me invadindo e eu quero contar aquilo".
Na contramão da exploração
Krenak é um crítico voraz de modelos de urbanização e industrialização que não consideram a sustentabilidade, a preservação de territórios e a natureza. No podcast, afirmou que o Brasil não sabe conviver com a própria riqueza.
"O antropólogo Eduardo Oliveira de Castro diz que o Brasil se especializou na produção do pobre. Não da pobreza, do pobre. E produz o pobre em série." Ele ilustra esse pensamento com histórias recentes da desapropriação de terras indígenas e a realocação dessas pessoas em conjuntos habitacionais, o que, para ele é um desrespeito com o modo de vida dos povos originários.
Ainda de acordo com o escritor, a exploração dos territórios para além do litoral do país se tornou mais intensa a partir do século 20, em virtude da busca por água e minério. "Isso empurrou esse Brasil branco e fronteiriço para dentro desses territórios, estabelecendo esses cortes, mas nós ainda estamos resistindo".
Durante o episódio, o escritor brinca que os ouvintes deveriam estar pensando que ele já estava pegando pesado demais. Para defender seu posicionamento, finaliza com a seguinte fala:
"Não tem como conversar agora, no século 21, só para distrair as pessoas. Elas já estão distraídas demais. Precisamos contar histórias para fazer as crianças dormirem e despertar os adultos que estão parecendo zumbis".
Ailton Krenak
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